sexta-feira, julho 31, 2009

Um só homem



Procuro na sombra. Ali, nos confins da mão que ergo como uma asa. Aqui termina todo o meu ser, a carne acaba e começam os astros, a luz das estrelas. Aqui começa o mar. O único junto a quem habita, desde sempre, a eternidade errante da terra. Aqui começa o mar, aqui termino.

Por debaixo de mim os enterrados, navegando por outro mar sombrio, o da morte, onde um vento os empurra até ao confim. Deus nada pergunta, porque Deus em nada existe. A terra cala, porque nada espera. Um só homem, sob os planetas, a sua morte inútil.

quarta-feira, julho 29, 2009

Esta noite lúcida



Hoje venho falar-te, como a mim mesmo. Como me falo quando estou a sós, magoado de dias tristes que nos contemplam, raízes onde cresce, matinal e obscura a primeira carícia da terra. Venho falar-te como a mim mesmo, esta noite lúcida enquanto a lua lança sobre os mundos uma luz calcária e fere o horizonte no seu duro, lento e solitário osso.

segunda-feira, julho 27, 2009

Real



Observava-a frente a ele com um olhar sério e preocupado e, pela primeira vez no seu espírito, surgia a ideia apenas perceptível do que é no fundo a realidade, infinitamente serena, mas ao mesmo tempo de uma grande tristeza.

segunda-feira, julho 20, 2009

Tempo #6



Enfim, retira-se como uma venda. O tempo, esta grande mentira, o tempo que mata, o tempo que até hoje nos matava em silêncio. O tempo recuperou o seu ritmo sanguinário, o seu galope. O tempo, esta grande mentira.
O tempo recuperou o seu ritmo sanguinário, já não sabe mentir, corre extenuado. Nunca poderá entregar a mensagem que outros mutilados e outros mortos transmitiram.

sexta-feira, julho 17, 2009

O minuto seguinte


Edward Hopper - Hotel Room

Soube que tinha acontecido algo irreparável no momento em que um homem me abriu a porta desse quarto de hotel e a vi sentada ao fundo, olhando pela janela de um modo estranho. Quando fui não se passava nada de estranho, ou pelo menos nada fora do habitual, nada que anunciasse o que iria suceder durante a minha ausência. Esta vez, como todas, ela prognosticou que algo correria mal e eu, como sempre, passei ao lado do seu prognóstico; saí da cidade numa quarta-feira, deixei-a pintando de verde as paredes do apartamento e no domingo seguinte, quando regressei, encontrei-a num hotel, a norte da cidade, transformada num ser aterrado e aterrador. Não conseguir saber o que lhe aconteceu durante a minha ausência e se lhe pergunto manda-me à merda; a mulher perdeu-se dentro da sua própria cabeça, faz catorze dias que a procuro; é como se ela habitasse uma realidade paralela, bem perto mas intransponível, como se falasse uma língua estrangeira. A transtornada razão de quem quer regressar a casa e não o consegue, no minuto seguinte nem sequer se lembra de ter tido casa.

quarta-feira, julho 15, 2009

Pelos ares



Enquanto informava os seus amigos do que tinha acontecido, enquanto se vestia tão rápido quanto podia, enquanto bebia um café que estava a ferver sem ter mexido bem o açúcar depositado no fundo da chávena, enquanto pisava o acelerador do seu carro para subir a rampa do parque subterrâneo, ele tratava de todos os cadáveres que povoavam a sua memória junto com recordações de todos os acidentados que tinham conseguido sobreviver perante os seus olhos. Agarrava-se a cada cama de hospital, a cada exercício de recuperação, a cada lágrima furtiva, a cada sorriso consciente, a cada jarra de flores, como ao único trampolim capaz de mandar pelos ares outras tantas imagens de corpos sem pernas, sem braços, sem olhos, sem cabeça, sem um corpo de verdade, todos os despojos privados de vida cuja morte tinha visto certificar ou certificado ele mesmo. Nunca tinha estado submetido a uma pressão semelhante, nunca se tinha sentido tão fora de si, nunca recordava ter tido tanto medo como então. Precisava de gritar, insultar as nuvens, arranhar-se na cara, mas estava quieto, e conduzia com todo o cuidado que era capaz à velocidade máxima do carro, e com toda a esperança que podia improvisar.

terça-feira, julho 14, 2009

Aparte



É muito difícil para mim aceitar esta tarefa: manter-me aparte e agir como intermediário; comunicar algo tão essencial como queijo e vinho. A sociedade nunca chegará a compreender estas exigências, continuará indiferente. No entanto, eu devo aprender e compreender a sociedade. Devo aceitá-la?

Faço-me explodir.

quarta-feira, julho 08, 2009

Antigo


Gerhard Richter

Nasce a lua sobre o mar como um olhar antigo do homem. No porto vão-se acendendo as primeiras luzes.

segunda-feira, julho 06, 2009

O preço certo



Ouço na mesa ao lado: "por dinheiro, um homem faz tudo."

Quanto dinheiro teriam que pagar a um homem feliz pela sua vida? Por quanto a venderia?

sexta-feira, julho 03, 2009

Põe uma rolha nisso!



Anda por aí uma petição a circular, intitulada "os consumidores preferem a cortiça." Um dos argumentos utilizado, que só pode ter vindo de gente acéfala, é que, se nós não deixarmos de usar as cápsulas e as rolhas sintéticas, todos aqueles ecossistemas delicados dos montados irão desaparecer. Esta é uma lógica perfeitamente idiota.

Não tenho bases para alegar que tudo isto não passa de um tentáculo da estratégia de marketing do lobby corticeiro, da luta dos produtores de cortiça para salvaguardar o seu guito face à quebra na procura do seu produto, mas digo que isto é o sonho molhado de qualquer empresa agrícola. Vamos lá ter aquele gordo careca da Quercus a ajudar-nos a vender dizendo que a nossa falência coloca em perigo as pequenas criaturas que, por acaso, vivem nos nossos terrenos. Até pode ser que os produtores de cortiça apenas tenham tido sorte, mas mesmo que não tenham nada a ver com esta história, o cheiro a estrume chega ao sétimo céu (e não me estou a referir ao bar gay friendly no Bairro Alto que, pelas razões óbvias, cheira sempre bem).