Aconteceu mesmo.
O Simão ligou-me, era fim de tarde e através da janela do carro conseguia apreciar o afrouxar da cidade. Estava entusiasmado, falava alto num turbilhão de palavras coladas e inquietas, os seus gestos quase que se adivinhavam no meu lado do telefone.
“Nem imaginas o sonho que eu tive, e tu também estavas lá na varanda com grade de ferro e vista para o rio.”
Senti-me incomodada, algo naquelas palavras vagas gritava familiaridade, eu conhecia aquela janela com vista para o rio.
“Ouve Susana, foi tudo tão real, depois entraste em casa e eu fui atrás de ti, para dentro da casa, mas as divisões estavam todas ligadas, entravas por uma porta e saías por outra...”
Todas aqueles pormenores apelavam a memórias que julgava arrumadas na antecâmara do meu subconsciente, memórias de um sonho antigo reduzido a lágrimas salgadas.
Desligámos o telefone, parei o carro sem perceber onde estava, tinha de parar e sair, ansiava pelo ar fresco do fim de tarde, precisava de fugir a correr de dentro do sonho do Simão.
Saí do carro, olhei para cima, estava em frente a uma porta, mesmo colado à ombreira o número nove, desavergonhado, olhava para mim. Era a porta, que dava para a rua, da casa da varanda com vista para o rio, no último andar de um prédio antigo, com todas as divisões ligadas como se fosse uma casa circular.
Só faltou o cheiro a baunilha neste sonho roubado.