sexta-feira, outubro 31, 2008

uma floresta no japão



sentas-te à direita no balcão, é um tipo de restaurante em que podes ver coisas acontecer; uma vez a minha mãe chorou num restaurante tailandês, quando ouviu o meu estranho toque de telemóvel pensou que chorava um pato na cozinha

há uma floresta no japão em que muitas pessoas se suicidam; porque estão deprimidas, violadas, em dívida, sozinhas, ricas ou aborrecidas; talvez algumas pessoas o façam apenas porque sim. talvez se todas as pessoas configurassem o seu telemóvel com um toque a imitar um pato, e ligassem todas uma para as outras em simultâneo, a minha mãe iria desatar a rir num restaurante tailandês

quarta-feira, outubro 29, 2008

leitão de folha de cálculo



não agarrei o leitão nem o abri com uma faca, em vez disso abri uma folha de cálculo e disse “ok”, fui à biblioteca, quando alguém me faz uma crítica construtiva tento não coçar a cabeça ou dizer “iá” muitas vezes pois parece defensivo, procurei leitão na net, olhei para fotografias de órgãos, não consegui perceber para onde estavam as setas a apontar e tudo isto me lembrou a minha vida toda

quando me perguntam porque não quero abrir o leitão e observar os seus órgãos digo “sou vegetariano há quase dez anos”, digo “é uma coisa pessoal, tal como não gostar de comer ovos”, dizendo “não é político, é pessoal” torna-me no vegetariano cara-de-cu nº1

uma rapariga vem ter comigo com a sua folha de cálculo “leitão.xls”, diz-me “sou vegetariana a partir deste momento”

terça-feira, outubro 28, 2008

Como vento

Lâminas afiadas de relva voam no vento, o vento é como muitas coisas, emoções, árvores; o vento não tem vergonha, não justifica o que faz, não se arrepende; o vento é o vento, é a sua natureza.

segunda-feira, outubro 27, 2008

Reflexões a 12,000 metros



A esta altitude, Lisboa é apenas um conceito, um tabuleiro de xadrez de prédios e automóveis que imita a página central da revista do meu vizinho. A este ponto da minha viagem estimo que a distância entre mim e os meus sentimentos é aproximadamente a quilometragem entre Lisboa e o Porto. Derreto-me na textura, o cinto apertado, e desapareço entre a minha chegada e o almoço de hoje.

Estou um pouco aborrecido, um pouco mais velho e estranho. Começo a divagar e a reflectir na vida que adoptei: um tipo de vida em que os homens lançavam arpões a alguma coisa muito maior e provavelmente melhor que eles próprios, querendo matá-la, querendo ver grandes nuvens de sangue para provar que existem. Imagina nascer e crescer, passando 38 anos pelo mundo a uma velocidade inimaginável; imagina um século como um quarto tão grande, um corredor tão comprido, em que poderias viajar uma vida e nunca encontrar uma porta, até teres esquecido que existem coisas como as portas.

Navego pelo ar a 12,000 metros, reflectindo no que me esqueci de saber, lembrando sorrisos que abracei. Aqui estou a 12,000 metros e mais perto da Terra do que alguma vez estive.

quarta-feira, outubro 22, 2008

2. se eu pudesse ficar em casa



dormir até sei lá quando, acordar, dormir mais, acordar, pensar “devia sair da cama”, dormir mais, acordar e pensar, “vou beber um litro de néctar de pêssego porque hoje posso fazer o que bem me apetecer, hoje é o meu dia”, ir à cozinha, fazer café, escolher uma chávena, esperar alguns segundos, adicionar açúcar, comer uma peça de fruta, ver um filme de ficção científica, ficar uma semana em casa a pensar sobre extraterrestres, pensar em pessoas com segredos, esticar-me no sofá, não me vestir, tomar um duche às 19:44, dar uma volta na vizinhança, rir-me dos autocarros que passam, podem pensar que sou doido, regresso ao sofá e vejo X-Files, levanto-me muito rápido e sinto-me tonto, levanto-me devagar e sinto-me tonto, tentar determinar se estou fisicamente doente ou se me tornei doente, dar um murro em alguma coisa, dar um pontapé em alguma coisa, adoptar um gato, capturar todos os gatos e pô-los num quarto, capturar todos os cães e pô-los numa sala, escrever observações, ouvir devendra banhart, ouvir belinda carlisle mas apenas porque o itunes está em shuffle, pensar no ebay, pensar em viciar-me numa droga qualquer, pensar em escrever alguma coisa

domingo, outubro 19, 2008

À face



A face humana é um poder vazio, um campo deserto. Após incontáveis milhares de anos em que a face humana falou e respirou, ainda tenho a impressão de que ainda nem começou a dizer o que é e o que sabe.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Apto?


Mais apto, mais feliz, mais produtivo,
confortável, sem beber muito,
exercício regular no ginásio
(3 dias por semana)
melhorar com os teus colegas de trabalho associados,
à vontade, a comer bem
(acabaram-se os jantares de micro-ondas e gorduras saturadas),
um melhor condutor, um carro mais seguro
(uma criança a sorrir no banco de trás)
dormir bem (sem pesadelos),
sem paranoia,
amigo dos animais,
(nunca afogar aranhas no ralo),
manter-se em contacto com os velhos amigos
(beber um copo de vez em quando),
verificar a conta bancária,
favores por favores,
gostar mas não amar,
dormir bem (sem pesadelos),
sem paranóia;
consultar frequentemente o saldo bancário,
favores por favores
(não matar traças ou deitar água a ferver nas formigas),
lavar o carro (aos domingos),
não ter medo do escuro
nada de tão ridículo e desesperado
nada tão imaturo – a um melhor ritmo,
mais lento e calculado, sem fuga possível,
preocupado (mas impotente),
um informado membro da sociedade
(pragmetismo não idealismo),
não irá chorar em público,
menos hipóteses de adoecer,
pneus que aderem no molhado,
uma boa memória, continua a chorar com um bom filme,
continua a beijar com saliva,
calma, mais apto, saudável e mais produtivo
um porco numa jaula com antibióticos.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Sorte

Através do que parecia sorte, pela sugestão de um pensamento fútil livre de laços familiares e pelos caminhos que percorri centenas de vezes, a verdade invadiu-me, e vi um mundo completo, uma esfera desconhecida; ilhas e continentes, e grandes oceanos, nos quais barco algum navegou desde que o homem ergueu o seu olhar para o sol.

terça-feira, outubro 07, 2008

Neo-simbolismo


A leitura de duas notícias, lado a lado, revelou-me a emergência de uma nova corrente.

1. JSD de Lisboa “tentou entregar as chaves”
“Um grupo de militantes da JSD dirigiu-se ontem à sede nacional da JSD para entregar simbolicamente as chaves das instalações da distrital da “Jota” de Lisboa à actual direcção, …” (in Publico, 3 Out)

O que é entregar simbolicamente as chaves? Será algo do tipo “epá, aqui estão as chaves, mas nem as vou tirar do bolso”, ou entregar as chaves mas ficar com o porta-chaves? Andam a brincar à política ou é mesmo assim? Kafka, teria aprovado.

2.Promessas por cumprir desde a Cimeira EU-África
“A iniciativa Eu Acuso (...) culminará com um ‘julgamento simulado, simbólico e público’ dos vários acusados – Governo, Assembleia da República, Comunicação Social e Sociedade Civil - ...”

Bem, tudo muito bem, são acusados. E depois? Imagino que dê origem a uma sentença simbólica que muito transtornará os réus. Não conseguirão sequer dormir com tanto peso na consciência. A propósito, qual será a magnitude de um peso simbólico?
A realidade é que as ONGs estão a entrar num estado de ansiedade major; preocupadas com o desaparecimento (leia-se consumo próprio) das verbas que lhes pagam os jipes com logótipo, as viagens de helicóptero e os telefones satélite onde comunicam “há pessoas a morrer aqui”. Irão deixar de morrer por isso?
Que me desculpem as ONGs que fazem realmente alguma coisa no terreno. Está aí alguém?

segunda-feira, outubro 06, 2008

1.



acorda, fica na cama mais um pouco, levanta-te, duche, bebe café, come o croissant ou uma torrada, bebe café, veste-te, certifica-te de que tens tudo o que precisas para não pareceres estúpido, sai, espera pelo autocarro, pensa em alguma coisa, pensa “olhem para mim, eu estou à espera do autocarro”, escreve alguma coisa no jornal, acena ao vizinho, entra no autocarro, senta-te antes que caias, apoia os joelhos nas costas do banco à tua frente, fica assim, olha pela janela, olha para alguém e apercebe-te que eles apenas olham um para o outro dentro do autocarro, porque olhas para fora e não para outra pessoa? decide que isso significa que és mais esperto do que eles, sai do autocarro, sente-te observado, pensa “olhem para mim, eu estou a sair do autocarro”, anda rápido, senta-te na sala e lê por vinte minutos ou coisa parecida, evita conversar com alguém, sorri um pouco, vai para o trabalho, fala com poucas pessoas, corta fotografias de revistas e cola-as na parede, corta o braço com o x-acto, vai à enfermaria, pensa numa dissecção de um porco a caminho, tenta não adormecer, pensa em comida, casos do supremo tribunal, pensa em comida, vai buscar uma maçã, come a maçã, pensa no que as outras pessoas estarão a pensar quando te vêem a comer uma maçã todos os dias, vai ao cinema, evita a conversa, memoriza frases, dá abraços às pessoas, pensa em comida, vai jantar, senta-te sozinho na mesa do canto, fala com as pessoas por vezes mas evita a maior parte das conversas, ri-te das pessoas, aquela parte do dia é aborrecida, desenha um peixe no teu próprio pulso, olha para o relógio, pensa nas vezes da vida em que irás precisar de matemática, apanha o autocarro para casa, pensa “olhem para mim, eu estou a entrar no autocarro”, sai do autocarro, pensa no dia, pensa no que farias se pudesses ficar em casa

quarta-feira, outubro 01, 2008

Então, guio




A minha mão lenta demora a escrita. Enquanto vagueia a mente, guio pela noite, guio sem pensamento, noutra parte. Passo por mim a cada esquina. Ali estou. Posso encontrar aquela pessoa?

Próximo quarteirão, lá estou eu de novo – pareço sorrir ao ver-me passar.