quarta-feira, julho 15, 2009

Pelos ares



Enquanto informava os seus amigos do que tinha acontecido, enquanto se vestia tão rápido quanto podia, enquanto bebia um café que estava a ferver sem ter mexido bem o açúcar depositado no fundo da chávena, enquanto pisava o acelerador do seu carro para subir a rampa do parque subterrâneo, ele tratava de todos os cadáveres que povoavam a sua memória junto com recordações de todos os acidentados que tinham conseguido sobreviver perante os seus olhos. Agarrava-se a cada cama de hospital, a cada exercício de recuperação, a cada lágrima furtiva, a cada sorriso consciente, a cada jarra de flores, como ao único trampolim capaz de mandar pelos ares outras tantas imagens de corpos sem pernas, sem braços, sem olhos, sem cabeça, sem um corpo de verdade, todos os despojos privados de vida cuja morte tinha visto certificar ou certificado ele mesmo. Nunca tinha estado submetido a uma pressão semelhante, nunca se tinha sentido tão fora de si, nunca recordava ter tido tanto medo como então. Precisava de gritar, insultar as nuvens, arranhar-se na cara, mas estava quieto, e conduzia com todo o cuidado que era capaz à velocidade máxima do carro, e com toda a esperança que podia improvisar.

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