quarta-feira, maio 11, 2005

Crónica impressa em papel branco, tamanho A4. (V.2)

Estou num autocarro, rodeado de bancos de plástico laranja com esquiços de escrita a caneta de feltro preta, piso anti-derrapante de borracha castanha. Entra um homem de face disforme com orelhas proeminentes, faltam-lhe alguns dentes e os que ainda possui desafiam a simetria. Como se a sua boca fosse um projecto desconstrutivista de um qualquer dentista moderno - um designer estomatologista . O autocarro pára. Um táxi quer mudar de faixa. O motorista do autocarro explode em protestos vocais (não posso classificá-los como verbais, quando nem sequer os consigo distinguir duma gravação áudio de dois grupos rivais de babuínos), a máquina acompanha o homem num dueto surreal.
O meu hipotálamo discorda do surrealismo factual. Guerrilha interna.
O homem disforme junta-se aos protestos. Esvai-se numa torrente de esboços de frases que lhe passam entre os dentes podres de verborreia. Penso, "eu não fui feito para isto". Os outros passageiros juntam-se ao grotesco protesto. "Eu não fui feito para isto. Que posso fazer para nunca mais entrar num autocarro, nunca mais ser agredido pela simples existência de pessoas que, por razões que desconheço, escaparam à evolução, ao progresso?". Também me ocorre a possibilidade de ser eu quem escapou ao progresso, com os seus bancos de plástico, caixilhos de alumínio lacados, wap, reality shows, sacos de plástico, talheres de plástico, java, zara, centros comerciais, pizzas mexicanas. Sim, uma média e uma coca-cola de lata, por favor.
Como posso nunca mais entrar num autocarro? Inscrevo-me numa universidade privada, na lapa, no curso de gestão (claro). Depois, licencio-me, (isto é, sei exactamente o mesmo que sabia mas tenho um papel que atesta o contrário), vou trabalhar para o banco de portugal, num edifício cinzento com cadeiras de plástico nas salas de espera iluminadas por luzes flourescentes.

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