quinta-feira, junho 23, 2005

Um filme sem tradução

Sexta-feira, dia 17, o único dia de folga islâmico, o dia de reza, o dia das eleições presidenciais. Foi o dia mais alucinante desta longa viagem.

Durante as seis horas de viagem pelo deserto escaldante ainda houve tempo para uma breve paragem na aldeia histórica de Naqsh-E Rostam, as casas eram pequenos buracos esculpidos na rocha, num vale verde no meio da planície interminavel, um oasis.

Nesta aldeia a curiosidade dos habitants é imensamente superior à dos visitantes. Em menos de nada vi-me rodeada pelo que parecia ser a população inteira inteira da aldeia, falavam, riam, olhavam, queriam saber coisas! Mas como? Alguns ainda trocavam o habitual salamaleco por hello… (eu tambem só aprendi o salamaleco e nan que é pão).

No destino, Bazm Bavanat, começou o carrocel de emoções. Desta vez os mil olhos pertenciam a um grupo de crianças, freneticamente faladoras a fazerem poses para as fotografias. Uma delas queria oferecer-me um gelado. No meio deste frenezim experimentei uma bebida, tipo água, feita artesanalmente com 40 plantas/flores da montanha. O sabor mais intenso era a rosas com um leve travo Silvestre.

Pouco depois apareceu o guia local, o Abaz, um homem que se orgulha das suas três palavras em inglês e do seu povo. Daí que a lingua não tenha sido impedimento para criar uma mini agência que recebe alguns turistas por ano para visitas no meio das montanhas.

Crianças, apresentações, água Silvestre, chá e apareceram cinco soldados para se juntarem à animação. Seguiu-se uma sessão de pergunta/resposta com tradutor, Mehdi (o motorista, o guia, o contador de histórias). Também os soldados ficaram com curiosidade de saber sobre Portugal, o país que para eles tambem quer dizer côr de laranja.

A conversa estava a ser complicada então fomos, todos juntos, votar.

Timidamente perguntei se poderia tirar uma fotografia a sala de voto e eles fizeram questão que fotografasse TUDO.

A sala de voto tinha um soldado a entrada e uma caixa aparentemente de cartão. A mesa de voto tinha quatro pessoas, duas a verificarem e a carimbarem os passaportes pois não existem listas de eleitores (o controlo é todo feito através dos carimbos e toda a gente pode votar em todo lado). As outras duas pessoas têm um caderno de senhas com uma parte destacável que é o boletim de voto (sem espaço para cruzes, só uma linha para ser escrito o nome do votado). A parte que fica no caderno é a prova de voto, onde o leitor tem de deixar a sua impressão digital.

No meio da confusão até o soldado se ria para a câmera fotográfica, o controlo dos votos era quase nulo e a seriedade eleitoral era agora uma festa de loucos a falar alto e a pedir fotografias.

Por fim, o chefe dos soldados deu o contacto telefónico ao Abaz, just in case...

O pegeot 405 dos anos 80 foi substituído por um jeep, seguramente mais velho, sem suspensão, e lá fomos nós para para os acampamentos nómadas.

A zona nómada fica num vale verde a 2500 m de altitude. Na primeira aldeia nómada, um grupo de crianças estava a fazer pão papel numa chapa de metal, o fogo era alimentado por caganitas de cabra.

As tendas nómadas são feitas de estacas de madeira e lã tingida de negro, numa construção supreendentemente rudimentar. O chão era coberto por tapetes.

Estas sim, sao pessoas pobres, vivem da terra, das ovelhas, dos tapetes que vendem na cidade. Vivem num paraíso e ao mesmo tempo num inferno para sobreviverem.

No meio das 6 ou 7 tendas, dos trajes coloridos dos seus habitantes e da paisagem perfeita, surge um home de fato preto. Na meia hora de conversa só percebi a apalavra UNESCO. A tradução da meia hora de bla bla bla foi: as fotografias tiradas a aldeia devem/têm de ser enviadas para a UNESCO pois esta gente precisa de ajuda!

A segunda aldeia era mais pequena, 3 tendas nómadas e 2 tendas brancas, uma era a escola e a outra era a tenda do professor, um homem que não largava o rádio. Era um homem com um ar campestre, que tinha largado a cidade havia 7 anos, juntamente com a sua mulher, para seguir os nómadas e poder ensinar. E bom encontrar pessoas assim, para elas um sonho não tem limites!

A mulher do professor engraçou logo comigo, pegou-me na mão e levou-me para junto das cabras.

O sol ja se tinha escondido atrás das montanhas e já passava largamente das 19h quando apareceram 2 jeeps, um com soldados e outro com uma mesa de voto ambulante. Uma mota avisava as aldeias mais próximas da chegada dos jeeps.

A minha nova amiga apressou-se a segurar-me na mao, aquela textura já se estava a tornar algo familiar. As pinturas nómadas nas palmas das mãos, com sementes de flores vermelhas da montanha davam às mãos uma côr quente que evocava o elemento frio da natureza. Concluindo, tocar numa mão pintada era quase como segurar um reptil de sangue frio.

O acampamento ficou cheio com os habitantes dos acampamentos vizinhos. A minha amiga, a mulher do professor, ainda agarrada à minha mão foi votar no capot do carro de voto. Depois passou o boletim de voto para a minha mão e lá fui eu contribuir para a democracia iraniana, com um voto desconhecido na minha mão e a câmera de filmar do Abaz a registar todos os meus movimentos...

1 comentário:

anoeee disse...

Pelo que descreves parece ser, acima de tudo, um filme para além das palavras. A realidade a não precisar de palavras para fluir.

Não usar palavras é pôr de lado as caixinhas mentais em que se arruma tudo e olhar verdadeiramente para as coisas.

Côr-de-laranja é uma óptima côr! Não me importava nada de ser do país côr-de-laranja por uns tempos! Que inveja!!!