terça-feira, agosto 02, 2005

Madrid Revisited

Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito
dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual
a externa ordenação desta cidade onde regresso

Chove sobre estas ruas desolada e espessa como esmiuçada chuva
a tua ausência líquida molhada e por gotículas multiplicada

O céu entristeceu há uma solidão e uma cor cinzentas
nesta cidade há meses capital do sol núcleo da claridade

É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência
uma imensa ausência onde as casas divergiram em diversas ruas
agora tão diversas que uma tal diversidade faz
desta minha cidade outra cidade

A tua ausência são de preferência alguns lugares determinados
como correos ou café gijón certos domingos como este
para os demais normais só para nós secretamente rituais
se neutros para os outros neutros mesmo para mim
antes de em ti herdar particular significado

A tua ausência pesa nestes loca sacra um por um
os quais mais importantes que lugares em si
são simples sítios que em função de ti somente conheci
e agora se erguem pedra a pedra como monumento da ausência

Não vejo aqui o núcleo geográfico administrativo de um país
capital de edifícios centro donde emanam decisões
complexo de museus bancos jardins vida profissional turismo
que um dia conheci e não conheço mais

Aqui só há o facto de eu saber que fui feliz
e hoje tanto o sei que sei que sê-lo o não serei jamais
12 esta a capital mas capital não de um certo país
capital do teu rosto e dos teus olhos a nenhuns outros iguais
ou de um país profundo e próprio como tu

Madrid é eu saber pedra por pedra e passo a passo como te perdi
é uma cidade alheia sendo minha
é uma coisa estranha e conhecida

Abro a janela sobre o largo e o teatro onde estivemos
e onde na desdémona que vi te vi a ti
Não é chuva afinal que cai só cai a tua ausência
chuva bem mais real e pluvial que se chovesse

Mais do que esta cidade é só certa cidade que jamais houvesse
numa medida tal que apenas lá profundamente eu fosse
e nela só a minha dor como uma pedra condensada
de pé deitada ou de qualquer forma coubesse
uma cidade alta como as coisas que perdi
e eu logo perdi apenas conheci
pois mais que a ela conheci-te a ti

Foi de uma altura assim que eu caí
superior à própria torre desse hotel
por muitos suicidas escolhida para fim de vida

Não é esta cidade essa cidade onde vivi
onde fui ao cinema e trabalhei e passeei
e na chama do corpo próprio a mim sem compaixão me consumi

Aqui foi a cidade onde eu te conheci
e logo ao conhecer-te mais que nunca te perdi

Deve haver quase um ano mais que ao ver-te vi
que ao ver-te te não vi e te perdi ao ter-te
Mas a esta cidade muitos dão o nome de madrid

Ruy Belo

6 comentários:

Anónimo disse...

Madrid é uma cidade fantástica! Já lá deixei muitos risos e lágrimas. Tem muito de mim e eu dela. Quero sempre recordá.la como uma cidade alegre, em que os dias de chuva não se comparam às tardes de sol nas esplanadas, com uma caña por companhia.

Lu disse...

E churros com chocolate quente.
Vou já ver o horário do comboio...

Anónimo disse...

Acho o nome deste blog super criativo! :D

Lu disse...

Este poema não é só sobre Madrid. É sobre lugares que são muito mais que lugares físicos. É sobre momentos que ficam gravados nas paredes, no chão, nas árvores, no cheiro...
Um destes meus lugares é a praia do Meco. Talvez Madrid também... E o principe real... E o adamastor...

Anónimo disse...

Não é Madrid que é assim
São os lugares que vividos
Sempre nos dizem de nós mais do que aquilo que seríamos capazes de atingir
Em qualquer lugar acontecem coisas mágicas, mesmo nos mais insuspeitos e anónimos onde subitamente uma pequena serigrafia (de vida?), colocada pelo acaso, faz diferença.
E em Madrid tb há lugares, tb há serigrafias.

Unknown disse...

lol, ganda coincidência: postas isto no dia em que andei pelo belo do Prado... :)